Vivemos um tempo desafiador, de crise e transição planetária. Mudanças inevitáveis e perdas devastadoras estão acontecendo, bem como estão se consagrando curas e transformações profundas no âmbito individual e coletivo.
O amor e o desamor estão mais evidentes. A vida convida o ser humano a um despertar, para o qual a dissolução da fantasia de separatividade, referida por Pierre Weil (2011) como principal causa do sofrimento, torna-se cada vez mais urgente.
A dor do outro é também a minha dor. O que me afeta, afeta o outro. Por meio do sofrimento, começamos a despertar para a verdade: Somos todos Um. Há uma unidade no sofrimento e na cura. Há um chamado para o indivíduo se conscientizar desta verdade e se mobilizar, buscando por autoconhecimento e autocura. O desenvolvimento de cada indivíduo impacta positivamente no desenvolvimento coletivo.
O amor é o grande catalisador desta transformação. Ele nos potencializa, inclusive, para reconhecer, acolher, compreender e transformar o desamor e todo sofrimento gerado por ele.
Neste contexto, o desenvolvimento da compaixão desponta como prioridade, para que possamos lidar com o sofrimento pessoal e coletivo, a partir de uma perspectiva mais humanizada.
Segundo Thupten Jinpa (2016), escritor da tradição tibetana, compaixão é amor. A compaixão é o mais alto ideal espiritual e a mais alta expressão de nossa humanidade. É um sentimento que surge quando o indivíduo se vê diante do sofrimento do outro. Está relacionada à interdependência e à unidade entre os seres humanos. A compaixão envolve a percepção da vulnerabilidade da condição humana e a capacidade do indivíduo de se colocar no lugar do outro. Porém, o autor afirma que vai além da empatia: a compaixão é uma resposta à dor humana, baseada na compreensão, paciência e bondade. Ela conduz à ação, pois mobiliza o indivíduo a querer transformar a situação de sofrimento, por meio de atos de bondade e cooperação. A capacidade de sentir compaixão e autocompaixão é inata, mas deve ser desenvolvida.
O desenvolvimento da compaixão tem sido objeto de estudos científicos. Autores descrevem como o ser humano reage, inclusive fisicamente, ao estresse gerado pelo julgamento excessivo, bem como os benefícios de realizar atos de compaixão. Pesquisadores têm se empenhado na elaboração de programas de desenvolvimento da autocompaixão e da compaixão, a partir da integração da tradição milenar budista e da ciência.
Neff (2017), pioneira e referência mundial nos estudos sobre autocompaixão, apresenta a autocompaixão como antídoto para o ser humano superar o autojulgamento e aprender a se aceitar plenamente. O autojulgamento leva aos sentimentos de separação e de isolamento, caminho oposto à unidade, à interconexão e ao amor universal. A autocrítica ou autojulgamento costuma surgir quando algo dá errado para o indivíduo. Nosso organismo percebe essa autodepreciação como ameaça e o sistema corporal de ameaça-defesa é ativado, gerando estresse físico e mental.
Aqui cabe uma reflexão: Alguém que se julga sistematicamente e não se aceita pode ter atitudes reais de compaixão em relação a outras pessoas?
Assim como a paz, a compaixão deve começar a ser desenvolvida dentro do ser. A autocompaixão permite que, diante do sofrimento, o indivíduo se acolha, que cuide de si com amorosidade, capacitando-o também para acolher e cuidar dos outros.
Os estudos revelam que o ato da compaixão é benéfico para quem o pratica, inclusive fisicamente, pois estimula a liberação dos hormônios endorfina (hormônio do bem-estar) e ocitocina (hormônio do amor). A prática da compaixão diminui o estresse, gera otimismo e dá propósito à vida (Gilbert, 2014; Jinpa, 2016). Além disso, a autocompaixão promove felicidade, satisfação e autoconfiança (Neff e Germer, 2019).
Fisiologicamente, quando uma pessoa pratica a autocompaixão desativa o sistema de ameaça-defesa, que leva ao estresse, e ativa o sistema de cuidados, que pode conduzir a um estado de conexão e presença amorosa consigo e com o mundo ao seu redor. As vocalizações suaves e o toque calmante são formas confiáveis de reduzir o estresse e ativar o sistema de cuidados. (Gilbert, 2014; Neff & Germer, 2019).
Neff & Germer (2019) definem a autocompaixão como presença amorosa conectada. Essa definição abrange os três elementos principais da autocompaixão: Mindfulness ou atenção plena (presença) que consiste em uma postura de abertura e receptividade ao momento presente; autobondade (amorosa) que é vivenciada como a cordialidade por si mesmo e autoaceitação incondicional; e humanidade compartilhada (conectada) que é a conexão gerada pelo senso de que o sofrimento faz parte da experiência de todos os seres humanos. Cultivar autocompaixão ou um estado de presença amorosa conectada transforma a relação do indivíduo consigo, com os outros e com o mundo.
Pierre Weil (2011) sugere a busca do silêncio e da tranquilidade da mente por meio da meditação, como uma forma do ser humano poder vivenciar a realidade do espírito pessoal e do espírito universal: a ausência de separação. Para o autor não há distinção entre a consciência pessoal e a consciência universal.
A prática de Mindfulness, ou atenção plena, como meditação e principalmente como mudança de postura diante da vida e de si, é apontada por vários estudiosos como fundamental para o desenvolvimento da autocompaixão e da consciência (Gilbert, 2014; Jinpa, 2016; Kabat-Zinn, 2017; Leloup, 2009; Neff & Germer, 2019; Weil, 1999; Wenceslau et al, 2016; Williams & Penman, 2015).
Segundo Kabat-Zinn (2017), criador do programa de redução de estresse baseado em Mindfulness ou atenção plena, é possível direcionar a atenção plena para a dor emocional, utilizando sua energia para o crescimento e para restauração da inteireza do ser. A cura requer aceitação e sintonia com a capacidade de conexão e integração.
Segundo Paul Gilbert (2014) é fundamental que se cultive a compaixão interna, como forma de harmonizar o cérebro e gerar saúde mental e relações sociais saudáveis. Gilbert também sugere o Mindfulness como estratégia facilitadora deste processo. Para o autor, o desenvolvimento da compaixão depende da compreensão do indivíduo sobre o sofrimento e sobre o valor da compaixão, desde que tenha oportunidades para aprender a praticá-la.
Paz e compaixão caminham juntas, ambas se desenvolvem a partir de um estado de presença que pode ser aprendido, com gentileza. A Arte de Viver em Paz (AViPaz) de Pierre Weil é um presente para todos nós e apresenta diretrizes valiosíssimas deste caminho. O amor semeado nunca se perde, ele se multiplica e se expande, gerando profundas e necessárias transformações.
É possível despertar para a paz e para a compaixão, vivenciando ambas por meio da educação. Qual seria o impacto da sistematização desta vivência em nossas escolas, na vida de educadores e educandos? Qual seria o impacto deste aprendizado nos níveis pessoal, social e ambiental?
O desenvolvimento da paz e da compaixão são fundamentais para a felicidade pessoal e para o bem-estar coletivo, especialmente em tempos de sofrimento e transformação intensa como o que vivemos.
Segundo o artigo de Natalia Luz (2014), Ubuntu é a filosofia africana que se refere à conexão existente entre todos os indivíduos (“Eu sou porque nós somos”), de forma que o sofrimento de um afeta todos os outros. Ubuntu implica em respeito, partilha, empatia e compaixão. É uma ética ancestral africana que permeia a vida social, política e religiosa deste povo. A luta contra a opressão e a segregação racial foi ancorada neste princípio fundamental.
Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz de 1984 por sua luta conta o Apartheid, descreve Ubuntu de uma forma comovente (Luz, 2014):
“É a essência do ser humano. Ele fala que minha humanidade está presa e está indissoluvelmente ligada à sua. Eu sou humano, porque eu pertenço. Ele fala sobre a totalidade, sobre a compaixão. Uma pessoa com Ubuntu é acolhedora, hospitaleira, generosa, disposta a compartilhar. A qualidade do Ubuntu dá às pessoas a resiliência, permitindo-as sobreviver e emergir humanas, apesar de todos os esforços para desumanizá-las”.
Diante da opressão e do sofrimento: Compaixão! Ubuntu!
Karen Armstrong (2020) – escritora, consultora e conferencista sobre tradições religiosas – percebeu em seus estudos que a compaixão é a essência que conecta todas as religiões. Com a intenção de fomentar a reflexão sobre os contundentes conflitos religiosos existentes no mundo, a autora conclamou líderes de diferentes religiões para discussão sobre o tema da compaixão e para a elaboração da Carta pela Compaixão (Charter for Compassion). Esta carta, resultante de esforços cooperativos, visa restaurar o pensamento e a ação compassivos na humanidade, a partir da afirmação do princípio da empatia: devemos nos colocar no lugar do outro e tratá-lo como desejamos ser tratados.
A Carta pela Compaixão está disponível no domínio www.charterforcompassion.org, para leitura, assinatura e compartilhamento.
A construção de um novo mundo pede a humanização do ser, por iniciativas individuais e coletivas. O papel do educador é essencial, como agente de transformação de si próprio e de seu entorno.
A paz e a compaixão começam dentro do coração de cada um de nós. Passo a passo, com presença, verdade e gentileza a revolução silenciosa idealizada por Pierre Weil (1999) se ampliará.
Referências Bibliográficas
ARMSTRONG, KAREN. Paixão por Compaixão. TED talk, 2020. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/karen_armstrong_passion_for_compassion/transcript?language=pt-br > Acesso em 19/08/2021.
Carta pela Compaixão. Charter for Compassion, 2021. Disponível em: <www.charterforcompassion.org> Acesso em: 19/08/2021.
GILBERT, P. The origins and nature of compassion focused therapy. British Journal of Clinical Psychology, v.53, n.1, p. 6-41, 2014.
JINPA, T. Coração sem medo. Rio de Janeiro: Editora Sextante, 2016. (e-book – não paginado).
KABAT-ZINN, J. Viver a catástrofe total. São Paulo: Editora Palas Athena, 2017.
LELOUP, J. A montanha no oceano: meditação e compaixão no budismo e no cristianismo. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2009.
LUZ, NATALIA. Ubuntu: a filosofia africana que nutre o conceito de humanidade em sua essência. Site: Por dentro da África, 2014. Disponível em: <http://www.pordentrodaafrica.com/cultura/ubuntu-filosofia-africana-que-nutre-o-conceito-de-humanidade-em-sua-essencia> Acesso em: 19/08/2021.
NEFF, K.; Autocompaixão. Teresópolis, RJ: Editora Lúcida Letra, 2017.
NEFF, K.; GERMER, C. Manual de Mindfulness e Autocompaixão. Porto Alegre: Artmed, 2019.
WEIL, P. A arte de viver a vida. Petrópolis, RJ: Editora Vozes; Lorena, SP: Editora Diálogos do Ser, 2011.
WEIL, P. Lágrimas de compaixão. São Paulo: Editora Pensamento, 1999.
WENCESLAU, L.D.; PORTOCARRERO-GROSS, E.; DEMARZO, M.M.P. Compaixão e medicina centrada na pessoa: convergências entre o Dalai Lama Tenzin Gyatso e Ian McWhinney. Rev Bras Med Fam Comunidade, v.11, n.38, p.1-10, 2016.
WILLIAMS, M.; PENMAN, D. Atenção Plena. Rio de Janeiro: Editora Sextante, 2015.
Ozana Clara de Medeiros é Terapeuta Transpessoal. Facilitadora de processos de cura a partir da energia Reiki, canto e diálogo terapêutico. Mestre em Reiki.
Formação UNIPAZ-SP: Especialização em Psicologia Transpessoal (2018); Formação Holística de Base (2019); Laboratório de Práticas Terapêuticas (2021).
Graduação em Fonoaudiologia – USP (1996). Atuação em Fonoaudiologia Clínica e Saúde Pública. Especialização em Voz – CEFAC-SP (2004).
Cantora e compositora.