A única certeza é que escutamos diferente da pessoa que está à nossa frente. Cada uma escuta – ou não escuta – de acordo com suas experiências na trilha da vida.
Nos nossos passos, vamos criando lâminas de escuta que se estruturam a partir de como experienciamos o que nos passa e nos perpassa. Memórias se formam e corremos o risco de viver reduzidas a elas e, mais perigoso, achar que nossas formas de ver/escutar são as corretas, que as lâminas que se formaram nos entregam A Verdade.
Muitas das vezes, sequer consideramos a possibilidade de o outro não estar escutando exatamente o que estou falando. É tão claro! Só que não… Uma só palavra acende memórias, sensações, emoções muito diferentes em cada pessoa. Provavelmente, se eu pensar em ‘chá’, por exemplo, o que chega a mim e a você é bem diverso. Pode remeter a um chá quente numa mesa toda bem arrumada com o aconchego a que convida; pode ser um chá gelado tomado apressado entre compromissos; pode, ainda, remeter àquele dia um que passei mal e precisei tomar um chá de boldo que estava muito amargo. O meu chá e o seu chá podem não ser o mesmo. Grande chance de não serem. Se isso acontece com uma palavra, o que não dirá com uma frase ou um encadeamento de ideias.
Nossas lâminas filtram o que é dito e entregam um significado subjetivo, mesmo quando o dito se refere a algo concreto. O que escutamos e como isso é processado origina um movimento interno que entrega uma reação que pode ou não vir à tona como expressão. O que mais comumente acontece numa suposta conversa é que somos catapultados pelos nossos próprios significados, entramos numa vertiginosa trilha de pensamentos e deixamos de escutar quem está à nossa frente. A partir daí, só estamos esperando nossa vez de falar – isso quando não interrompemos a fala da pessoa para colocar nosso fantástico ponto de vista sobre o que está sendo dito.
Então, como é possível se colocar verdadeiramente disponível para a escuta?
Antes de qualquer outra coisa, é importante lembrar que se quero colocar chá (ele de novo!) em uma xícara, ela precisa ter um espaço para recebê-lo. Igualmente, o pressuposto da escuta é haver um vazio, o vazio interno, o silêncio onde é possível acolher a voz do outro. É preciso eu me esvaziar de mim e assim abrir esse espaço interno para receber o outro em mim. E se esvaziar pode começar com se esvaziar de ar para receber o novo e se conectar com esse lugar sagrado.
Ok, mas como me manter no acolhimento à voz do outro? O caminho pode ser abrir mão de minhas próprias lâminas de escuta. Escutar com a curiosidade de uma criança ao ver algo pela primeira vez, brincando com as possibilidades que se apresentam, olhando por diversos ângulos, deixando sobressair o que está para além dos nossos conformismos da escuta. Nos abrir para a percepção das lâminas da escuta do outro e, por um momento, escutar por elas para quem sabe, numa troca de escutas, poder sugerir outras lâminas, já que elas estão sempre presentes.
E aí me lembro de um trecho do livro A arte da escuta, de Julia Cameron. Ela cita uma fala de James Navé (poeta, professor e contador de estórias americano) que reproduzo aqui: “Quando escutamos alguém profundamente encontramos sua alma. As palavras são como migalhas que nos levam pela floresta onde se encontra o eu autêntico. (…) Escutar é um ato de amor. Dar tempo é um ato de profundo cuidado. Dar tempo significa pausar e permitir que o silêncio guarde os pensamentos que surgem. O núcleo da escuta é generosidade, empatia, gentileza e paciência. Escutar transmite uma mensagem de respeito aos que estão em volta, mas também é importante escutar a si mesmo. No fundo, a escuta é um ato de se apaixonar… por nós e pelas pessoas que estamos escutando.” (Cameron, p. 102)
Entre tantas lindezas ditas por ele, me chamou a atenção nesse momento o “Dar tempo”. E aqui vai uma reflexão final: pode nossa escuta ter se tornado apressada como clama nosso entorno? A pressa da realização, a pressa de atingir metas, a pressa da locomoção, a pressa… e vamos perdendo a escuta, a admiração, a experiência, o viver. Dar tempo. Escutar requer tempo, quer seja na escuta de si próprio, quer seja na escuta do outro. A escuta apressada nos condena à resposta da razão desconectada do coração. Do pensar que leva ao agir quase instantâneo, desconectado do sentir. Se deixar permear, perpassar, tocar, perceber a reverberação da fala do outro, de nós mesmos e do mundo que nos cerca é base da escuta. Para isso, é preciso disponibilidade, tempo e o sagrado silêncio que brota do vazio.
Mônica Thiele Waghabi é caminhante da trilha da consciência. Cursa pós-graduação em Psicologia Transpessoal na Unipaz SP e se dedica ao Canto Integrativo, abordagem holística do canto. Esteve cantora, diretora musical e arranjadora do Vésper Vocal – grupo vocal feminino a cappella – e integrou o coral da Orquestra Sinfônica do Estado de SP (OSESP). Trouxe ao mundo o livro póstumo de Magro Waghabi, “Vozes do Magro – discografia comentada e arranjos selecionados” dos 15 primeiros LPs do MPB4 e é coorganizadora do livro “Samuel Kerr: arranjos corais”. É autora do livro de poemas “Caminhos do coração – as estações do amor”.