Estar a serviço conjuntamente,
Compartilhar sabedoria conjuntamente.
Tornar-se uma comunidade em espírito.
(Deepak Chopra)
As efemérides são datas definidas nos calendários e podem se tornar eficazes imprimindo importância e visibilidade a temas não só direcionados ao consumismo, mas especialmente à conscientização.
Há 19 anos se comemora o Dia Mundial dos Cuidados Paliativos, sempre no segundo sábado do mês de outubro, que em 2023 foi dia 14. Muitos eventos aconteceram durante todo o mês, para apresentar os desafios e os avanços relacionados a esta abordagem médica ainda pouco compreendida.
Os Cuidados Paliativos são voltados para as pessoas que têm doenças graves que ameaçam a vida. Não são sentença de morte. Também não são o milagre da cura. Eles podem começar a partir de qualquer momento quando se tem o diagnóstico de doença grave — e o quanto antes isso acontecer, mais poderá ser feito em prol do paciente.
Os Cuidados Paliativos existem para possibilitar à pessoa em sofrimento físico, emocional, social e espiritual – ou seja, em dor total, uma vez que estes sofrimentos acontecem simultaneamente – que ela receba alívio, que seja tratada com humanidade, que seja vista por inteira, que seja protagonista de suas escolhas durante o tratamento.
É uma abordagem que pode significar muito quando se trata de viver até o último momento com mais qualidade de vida, com foco numa saúde que transcende o corpo físico. É importante ressaltar que os Cuidados Paliativos exigem estudo e conhecimento, não descartam os tratamentos habituais necessários e, em muitos casos, podem até aumentar o tempo de vida da pessoa.
Reconectando com a essência do cuidar
O tema escolhido em âmbito mundial para a comemoração da data neste ano foi Comunidades Compassivas, oportunidade para dar visibilidade aos projetos que estão em andamento e inspirar outras iniciativas que levem os Cuidados Paliativos a pacientes portadores de doenças que ameaçam a vida e que moram em locais de vulnerabilidade social.
O conceito de comunidades compassivas nos religa ao ideal de humanidade e solidariedade, trazendo em sua raiz aquilo que nos é comum: comunidade, compaixão, estar com, fazer com. Leonardo Boff, teólogo, afirma em seu livro “Saber Cuidar”, que o cuidado se encontra na raiz primeira do ser humano. Ele fala da importância de nos reconectarmos com a essência do cuidar. É um relembrar do que já sabemos, é um reaprendizado que garante a nossa existência enquanto seres realmente humanos.
Portanto, embora em sua essência as comunidades compassivas já existissem de modo espontâneo nas muitas culturas desde o início da convivência humana, suas bases foram resgatadas pelo australiano Allan Kellehear, sociólogo, professor e médico de saúde pública, cujos interesses de ensino, pesquisa e prática se concentram na morte, no morrer e nos cuidados de final de vida. No livro “Cidades Compassivas: saúde pública e cuidados de fim de vida”, ele defendeu a ecologia social e as estratégias de desenvolvimento comunitário como componentes elementares de qualquer abordagem de saúde pública em Cuidados Paliativos.
Cuidado no final da vida para moradores de favelas
Mesmo antes de ter contato com os conceitos de Kellehear, Alexandre Silva, enfermeiro paliativista brasileiro, deu início de forma espontânea às comunidades compassivas nas favelas da Rocinha e do Vidigal, no Rio de Janeiro, em 2018, sensibilizado pela realidade social com que se deparou enquanto pesquisava para a sua tese de doutorado em Cuidados Paliativos. Para além da carência social, o que chamou sua atenção foi a solidariedade que havia naturalmente entre os vizinhos dentro da comunidade: um potencial a ser estimulado.
Nas duas grandes favelas cariocas, o que parecia ser uma teoria distante, passou a ser uma prática. O estar e o fazer juntos se tornaram um valor essencial, em todos os âmbitos. É ser COM o outro, no grande exercício humano, comunicando informações, sentimentos, ações. Um modo de viver onde os vizinhos cuidam uns dos outros e se unem para organizar formas de auxiliar as pessoas mais necessitadas, incluindo seus familiares e cuidadores.
Dentro de uma comunidade compassiva, há o aprendizado e a expansão do sentimento de compaixão. O conceito de compaixão que abrange não somente uma sensação de empatia ou cuidado com a pessoa que sofre, mas que é também uma determinação prática e contínua em fazer tudo o que for possível e necessário para aliviar os sofrimentos dela. “A compaixão como força motriz em prol do alívio do sofrimento humano dentro da comunidade”, explica Alexandre. Todos juntos criando uma rede que se mobiliza num processo de autocuidado comunitário contínuo.
Segundo o mestre tibetano Sogyal Rinpoche, “a compaixão só é verdadeira quando é ativa. Avalokiteshvara, o Buda da Compaixão, é comumente representado na iconografia tibetana com mil olhos que veem a dor em todos os recantos do universo, e mil braços para alcançá-los todos e estender-lhes sua ajuda”.
Sabemos que, na prática, as coisas podem ser mais complexas, as necessidades humanas são permeadas pelas limitações do fazer coletivo, uma vez que saber viver em comunidade é uma construção na qual estamos engatinhando. Por outro lado, já se vê que é uma prática possível, uma vez que as ações concretas estão dando bons resultados. Comunidades compassivas inspiradas pelo projeto do Rio de Janeiro já estão implementadas também em Belo Horizonte, em Goiás e a mais recente em São Paulo.
Cada iniciativa é baseada em laços comunitários e voluntariado. Cada uma delas atua de forma independente, em seu contexto específico, com suas particularidades. E seguem juntas neste processo colaborativo, conectadas pelo mesmo propósito, ampliando a rede da compaixão.
Morte digna é um direito de todos
Reconhecer a presença da morte em nossas vidas ainda é um tabu, mesmo depois da pandemia que matou milhões. Bater na mesa de madeira três vezes de nada nos livra, apenas reforça a constatação de que negamos a finitude, embora ela seja inevitável: somos mortais.
Em 2010, o Brasil foi considerado um dos países com pior qualidade para se morrer, segundo levantamento da publicação The Economist. Há um longo caminho para que possamos mudar este panorama, mas a terra parece estar fértil para enraizar as mudanças.
Em 2012, a médica geriatra brasileira Ana Claudia Quintana Arantes fez uma palestra no TEDxFMUSP que rapidamente viralizou e já alcançou mais de três milhões de visualizações. A palestra, que terminou com a frase “A morte é um dia que vale a pena viver”, deu nome ao título do livro que desde o seu lançamento, em 2016, vem conquistando um público cada vez maior e narra as dificuldades que ela enfrentou para se manter no caminho da medicina, para convencer a equipe hospitalar de que o paciente merece atenção e cuidado mesmo quando não há mais chances de cura e que a morte digna é um direito de todos.
Lydia Rebouças, vice-reitora da Unipaz, também dialoga com a morte com amorosidade – há pessoas que já nascem com essa intimidade. Tecelã que é, concretizou o desejo que veio alinhavando há tempos e criou o curso “Parteiras e Parteiros da Passagem”, na Unipaz. Há uma “transmissão de serenidade” ouvi-la falar sobre “a sábia conselheira” – a morte sob a percepção de Carlos Castañeda– calcada na ciência e na vivência, com realismo e poesia.
Marie de Hennezel, coautora do livro “A arte de morrer”, em parceria com Jean_Yves Leloup, escreve: “O tabu da morte é um tabu da intimidade. Com efeito, se começamos a observar a realidade da morte é para as profundezas de si que o olhar se dirige. E é essa interioridade que nossa sociedade evita e dissimula o quanto pode.”
Jogar luz sobre o cenário onde impera o tabu da morte é tarefa ousada. A boa notícia é que, sem romantização, temos encontrado novas formas de introduzir em nossa sociedade uma atitude que aproxime morte e saúde de forma concreta, tendo como base os princípios do cuidado.
Para concluir, mais uma citação de Hennezel se apresenta: “Seja qual for o amor que sintamos por alguém, não podemos impedi-lo de morrer, se tal é o seu destino. Também não podemos evitar um certo sofrimento afetivo e espiritual que faz parte do processo do morrer de cada um. Podemos somente impedir que essa parte de sofrimento seja vivida na solidão e no abandono; podemos envolvê-la de humanidade”.
Bettina Turner é jornalista e diretora de documentários. Atua na área da Saúde há 11 anos. Atende em consultório como terapeuta craniossacral e embriodinâmica. Psicoterapeuta transpessoal pela Unipaz, é especialista em Cuidados Integrativos pela Unifesp onde produziu a monografia “E se a Morte falasse…”. Dando continuidade ao seu interesse pelos estudos sobre a morte e o morrer, fez especialização em Cuidados Paliativos na Casa do Cuidar. É voluntária em comunidades compassivas de favelas, onde adota o protocolo da Terapia da Dignidade para registrar as memórias de pacientes em final de vida.