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Constitucionalidade para a educação antirracista no Brasil, existe?

Em um dos dias da última semana de setembro de 2021 ao jogar “educação antirracista” no buscador da internet apareceram 554.000 resultados em menos de 1 segundo, entre notícias, artigos, anúncios de livros e eventos, grande parte relacionando a temática diretamente com o espaço escolar. Apenas este dado superficial já revela o crescente interesse geral pelo assunto e a considerável produção recente acerca da temática.

Contextualização histórica das relações raciais no Brasil, análises sobre os efeitos psíquicos em crianças (adolescentes, adultos e idosos) negras e não-brancas em decorrência do racismo estrutural, orientações sobre como “não ser racista e como ser antirracista”. Muito material de qualidade e referências consolidadas e críticas sobre nossa organização social. Este texto não se pretende inovador, mas sim, parte de uma reflexão ampla sobre a luta antirracista por meio da educação, que não é e nem pode ser limitada apenas ao contexto escolar e ao tratamento com as infâncias, apesar de serem estes dois pontos fundamentais na discussão.

Para pensar educação antirracista talvez valha retornarmos em como se vê a educação no Brasil. No artigo 205 da Constituição Federal de 1988 “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Apenas este curto parágrafo já nos remete a uma infinidade de interpretações necessárias para abordar o que seria e qual a importância e abrangência de uma educação antirracista em nosso país.

Logo de cara, o artigo diz que a educação é responsabilidade de toda a sociedade, logo, não é restrita à escola a qual podemos caracterizar como uma das instituições na qual a educação acontece. A educação também não é colocada como direito das crianças, mas de todas as pessoas. Talvez entendamos, desta forma, que a escola poderia ser o espaço mais democrático da sociedade, já que todas as pessoas passariam por ela em algum momento da vida, prioritariamente na infância e adolescência, e neste espaço teriam acesso à mesma educação, mas que também, caso algumas pessoas não passem pela escola, teriam acesso à educação em outros espaços / de outras maneiras.

De acordo com o artigo, os três objetivos da educação neste país são o “pleno desenvolvimento da pessoa”, o “preparo para o exercício da cidadania” e a “qualificação para o trabalho”. É possível pensarmos que o desenvolvimento pleno da pessoa exigiria a garantia de recursos para manutenção de sua integridade física? Possibilidade de desenvolver um sentimento de pertencimento ao grupo, ter acolhimento de seus conflitos e condições para o fortalecimento de sua autoestima? Possibilidade de aproveitar momentos de contemplação, prazer e ócio necessários para o estabelecimento de uma saúde mental? Espaço para o desenvolvimento de pensamento crítico e criação (não apenas reprodução) de produções intelectuais-artísticas?

Se a resposta a todas estas questões for “sim”, precisaremos então pensar em quem é considerada pessoa. Mesmo que biologicamente a raça humana seja apenas uma, as ciências humanas e sociais não deixam dúvidas quanto às inúmeras estratégias e ferramentas utilizadas para a manutenção de um sistema discriminatório. Talvez o argumento mais impactante e por isso mesmo o mais difícil de quebrar seja o de que, por sermos humanos, “somos todos iguais”. Será mesmo? Iguais em quê? E em quais instâncias?

Desde os processos de colonização acontecem no Brasil, assim como em muitos países da América Latina, estratégias de desumanização de pessoas que não correspondem ao padrão hegemônico de brancura, de origem étnica, de gênero, entre outros. Recorrendo a Abdias do Nascimento, Sueli Carneiro e Ailton Krenak, o genocídio das populações indígenas e negras vale-se de inúmeras estratégias desde o assassinato destes corpos até mecanismos mais “sutis” de silenciamento e apagamento de registros, história, memória, cosmologias, até o controle de natalidade e o “deixar morrer” pelo não oferecimento de condições básicas de subsistência pós abolição formal da escravidão, passando pela criação de estereótipos como selvagens ou dóceis ou hipersexualizados, mas sempre desumanos e servis. Como dito por Achille Mbembe, o racismo é a principal tecnologia para que o Estado opere seu biopoder e sua necropolítica, sua política de morte via precarização da vida de determinados grupos em determinados territórios. Colonização e neocolonização.

Aqui no Brasil não houve um apartheid tão explicitamente legitimado quanto nos Estados Unidos ou na África do Sul. Vivemos o racismo por denegação, como dito por Lélia Gonzales, e fomos socializados sob as brumas do mito da democracia racial, o que ainda faz parecer que pessoas de fenótipos diferentes convivam em harmonia e tendo as mesmas condições fundamentais de existência. Quais destas narrativas ainda habitam nossos imaginários? Quem é considerado humano hoje? A partir de quais critérios? A quem se destina a educação que potencializa o desenvolvimento pleno do ser?

Voltando ao artigo da constituição, será que o preparo para o exercício da cidadania pressupõe que o processo educativo garanta acesso a conhecer seus direitos e deveres perante o coletivo e a ter representatividade e protagonismo político? Se sim, isso exigiria reconhecer as pessoas como sujeitos de direito, como agentes na comunidade à qual pertencem. Se vimos há pouco que a população brasileira foi “educada” para acreditar na hierarquização das pessoas pelo seu “valor”, e que um desses critérios de valor é a cor da pele ou qualquer característica fenotípica que denote africanidade, ou origem étnica diferente da dominante, e que a hierarquização é uma tentativa de tirar a humanidade dessas pessoas, como então, chegar ao status de cidadãs?

Como mostrado por Nilma Lino Gomes, este tem sido um trabalho constante e árduo de muitos movimentos sociais mobilizados na luta pela promoção da equidade. Tão importante quanto a lei de obrigatoriedade da inclusão do ensino de cultura e história africana, afrobrasileira e indígena nas escolas (leis 10.639/2003 e 11.645/2008), a lei de cotas para pessoas negras e indígenas nas universidades (12.711/2012) e nos cargos públicos (12.990/2014), foram os resultados das eleições municipais de 2020, onde houve recorde de pessoas negras e mulheres candidatas e aumento, mesmo pequeno, de pessoas negras eleitas prefeitas no primeiro turno (de 29% em 2016 para 33% em 2020, segundo o TSE -Tribunal Superior Eleitoral).

As lutas pelo reconhecimento como pessoas, seres humanos, cidadãos, sujeitos de direitos tem origem nos quilombos, nas revoltas e em todos os movimentos insurgentes pela re-existência dos grupos subalternizados. Não são benevolência de um grupo privilegiado e que vive num pacto narcisista pela manutenção das discriminações.

E quanto ao último ponto destacado anteriormente no artigo da constituição, sobre qualificação para o trabalho? A qual trabalho se refere a frase? Todas as pessoas teriam as possibilidades de conhecer diversos tipos de trabalho e “escolher” em qual desejaria se especializar, se dedicar? Ou haveria determinados tipos de trabalho para determinados tipos de pessoa?

Neste momento é válido apontar que os fenômenos não acontecem separadamente e que as opressões se interseccionam. As relações de raça, classe e gênero apresentam-se escancaradamente interligadas quando olhamos para o quadro do mercado de trabalho no Brasil, onde segundo dados do IBGE de 2019 as pessoas negras continuam ocupando os postos de trabalho mais precarizados e mesmo quando têm maior escolaridade e/ou alçam melhores postos, recebem salários inferiores em relação aos de pessoas brancas.

Para as mulheres negras essa “herança da escravização” é ainda pior. Uma das maneiras como o racismo se manifesta é pela invisibilização da capacidade intelectual de pessoas negras, e isso se agrava no caso de mulheres, pois soma-se a discriminação de gênero. No Brasil isso já foi apontado por Beatriz Nascimento na década de 1970 onde analisa a condição de subalternidade à qual seu corpo foi submetido e às estratégias coletivas de impedimento de sua entrada no mundo escolar, e no mundo do trabalho por não ter “boa aparência”.

Sim, em algum momento da história do Brasil pessoas negras eram proibidas por lei de entrar em escolas, e após a assinatura da lei áurea em 1888, não foi criada nenhuma medida protetiva ou de proteção / garantia de condições básicas de subsistência para os recém “libertos”, que de “bons escravos” passaram a “maus cidadãos”, vagabundos e perseguidos pelas suas manifestações de resistência cultural (samba, capoeira, religiões de matriz africana, etc.).

Mais recentemente nos vale atentar aos estudos de bell hooks e outras críticas culturais que mostram quanto a pessoa negra até bem pouco tempo era retratada nos meios de comunicação em massa e nos produtos culturais, criando e mantendo estereótipos de bandidas, escravizadas, trabalhadoras domésticas, seguranças, etc. Mesmo isso tendo mudando nos últimos anos com um aumento de representatividade na televisão, nas revistas e em outras mídias, o que todos estes séculos de proibição de acesso e de superexposição a imagens de controle que criam imaginários de submissão, fizeram com a possibilidade das pessoas negras de desejarem ocupar determinados espaços? Ser médico, professor universitário, filósofo, engenheiro, e uma série de outras profissões “de elite” ou que “dão dinheiro”. Qual será o esforço psíquico individual e coletivo para que pessoas negras tenham o direito humano de desejar determinados tipos de trabalhos e perceberem-se competentes para tal? Quanto ainda nos enganamos acreditando na falácia da meritocracia? Estas discussões fariam parte de um processo educacional preocupado em qualificar pessoas para o trabalho?

Talvez este texto esteja trazendo mais questionamentos do que respostas, e isto pode ser positivo, não trazendo receitas homogeneizantes e fechadas de olhar para a temática, mas possibilitando a reflexão do que se pode entender como educação antirracista a partir de algumas bases às quais não se pode mais ignorar em 2021. A segregação racial brasileira é estrutural e afeta todas as pessoas nas mais diversas instituições. Estas, muitas vezes, têm dificuldades em reconhecer as diferenças como um ativo e/ou criar formas efetivas de acolhimento, valorização e criação de espaço para o desenvolvimento de variados potenciais oriundos das diferenças entre as pessoas que poderão ser fundamentais para a existência saudável da sociedade como um todo.

Desta forma, concordo com Paulo Freire, já que estamos em seu centenário, quando define educação como o processo constante de criação do conhecimento e da reinvenção da realidade pela ação-reflexão humana, e que este processo deverá ser feito de maneira libertadora e não dominadora. Inevitável considerar a importância da escola na constituição do sujeito na sociedade, mas a principal reflexão que gostaria de deixar aqui é de que a educação não está apenas na escola, ela permeia todas as instituições e relações sociais. Assim como o racismo. Desta forma, recorro novamente a Paulo Freire quando diz que “a transformação da educação não pode antecipar-se à transformação da sociedade, mas esta transformação necessita da educação”.

Débora Medeiros de Andrade é psicóloga com especialização em educação. Mais de 10 anos de atuação e desenvolvimento de projetos e eventos educacionais com base antirracista de forma interdisciplinar, considerando desenvolvimento humano, território e arte.

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